Astro da TV e do cinema
Richard Chamberlain, astro da TV que conquistou fama internacional com as minisséries “Shogun” (1980) e “Pássaros Feridos” (1983), morreu neste sábado (30/3) no Havaí, aos 90 anos. A informação foi confirmada por seu assessor, que revelou a causa da morte como complicações de um AVC. Ele faleceu um dia antes de completar 91 anos.
Chamberlain também foi o primeiro ator a interpretar Jason Bourne nas telas e protagonizou longas como “Petulia” (1968), “Delírio de Amor” (1970), “Os Três Mosqueteiros” (1973), “Inferno na Torre” (1974) e os filmes de aventura “As Minas do Rei Salomão” (1985) e “A Cidade Perdida de Ouro” (1986), ao lado de Sharon Stone.
Começo da carreira e sucesso com Dr. Kildare
George Richard Chamberlain nasceu em Los Angeles em 31 de março de 1934, e cresceu em Beverly Hills. Estudou no Beverly Hills High School e se formou em Artes na Pomona College. O talento para atuar surgiu nos palcos da escola, mas a carreira só começou de fato após o serviço militar — ele serviu por 16 meses na Guerra da Coreia e chegou à patente de sargento.
De volta aos EUA, estudou atuação com o ator Jeff Corey e foi contratado pela Paramount. Estreou na TV em 1959 no programa “Alfred Hitchcock Presents”, justamente interpretando o filho de Raymond Massey, que mais tarde seria seu mentor na série “Dr. Kildare”.
Seu primeiro papel de protagonista foi o jovem médico James Kildare na série “Dr. Kildare”, exibida entre 1961 e 1966 pela NBC. O sucesso foi tanto que ele chegava a receber mais de 12 mil cartas de fãs por semana, superando até o galã de cinema Clark Gable, segundo os estúdios da MGM.
Não bastasse a audiência televisiva, ele ainda virou cantor graças à série. Seu single “Theme From Dr. Kildare (Three Stars Will Shine Tonight)” chegou ao 10º lugar da Billboard Hot 100 em 1962.
Luta contra imagem de galã
O fim de “Dr. Kildare” marcou também o início de um processo de reinvenção artística. Apesar da fama, Chamberlain se sentia aprisionado na imagem de galã perfeito da TV americana e buscava se desvincular do estereótipo. Essa inquietação o levou a recusar papéis similares na televisão e buscar maior profundidade em sua atuação no teatro e no cinema. A decisão o levou à Inglaterra para estudar teatro e provar seu talento dramático em peças como “Hamlet” — tornando-se o primeiro ator americano a interpretar o papel no teatro britânico desde John Barrymore.
A mudança radical resultou em uma série de trabalhos desafiadores na Inglaterra, como o filme “Petulia” (1968), de Richard Lester, em que interpretou um marido abusivo ao lado de Julie Christie. A escolha por um papel sombrio e de antagonista foi vista como uma ruptura deliberada com sua persona televisiva e ajudou a abrir portas para uma fase mais ousada e diversificada de sua carreira.
Em “Júlio César” (1970), viveu o trágico Brutus numa montagem estilizada do clássico de Shakespeare. No mesmo ano, participou de “Delírio de Amor”, de Ken Russell, interpretando o compositor Piotr Ilitch Tchaikovsky com carga emocional intensa e nuances dramáticas que desconstruíam o arquétipo do herói romântico.
Papéis fora do convencional
“Delírio de Amor” marcou uma virada importante na carreira do ator, que assumiu pela primeira vez um personagem explicitamente gay no cinema, ainda que a homossexualidade do músico fosse apresentada de forma subentendida e enviesada pelas convenções da época. A obra mostrava o tormento emocional do artista diante de um casamento fracassado com Antonina Miliukova (vivida por Glenda Jackson), e sugeria de maneira contundente sua repressão sexual, em um retrato que mesclava dor, genialidade e desejo proibido.
Na época, Chamberlain ainda mantinha em segredo sua orientação sexual, o que tornava o papel um desafio duplo: artístico e pessoal. Décadas depois, o ator reconheceria o impacto dessa escolha. Em entrevistas, revelou como a experiência contribuiu para sua própria reflexão íntima, embora o temor de ser “descoberto” o tenha impedido de viver com liberdade plena durante a maior parte da carreira. Mesmo assim, a performance em “Delírio de Amor” evidenciou uma coragem discreta e antecipou a sensibilidade com que abordaria personagens complexos e emocionalmente ambíguos ao longo de sua trajetória.
Ele também desempenhou um papel importante em “Inferno na Torre” (1974). Num dos maiores clássicos do cinema de catástrofe, Chamberlain deu vida a Roger Simmons, engenheiro responsável pelo sistema elétrico do arranha-céu que desaba em chamas. Seu personagem é central na tragédia: para economizar nos custos da construção, Simmons instalou fiação abaixo do padrão exigido, o que causa o curto-circuito inicial. Viver o vilão da história rendeu ao ator críticas positivas em meio a um elenco estelar, que incluía astros consagrados do cinema como Paul Newman, Steve McQueen, William Holden e Fred Astaire.
Para completar as escolhas ousadas de sua filmografia, Chamberlain ainda estrelou “A Última Onda” (1977), do renomado cineasta australiano Peter Weir, no qual mergulhou no misticismo aborígene como um advogado envolvido em uma trama de sonhos proféticos e ancestralidade.
Sucesso como herói romântico
Apesar do esforço para desconstruir a imagem, o ator acabou se consagrando como herói romântico, ao protagonizar adaptações de aventuras literárias inspiradas nas obras de Alexandre Dumas.
Ele viveu o Conde de Monte Cristo em “O Conde de Monte Cristo” (1975) e o rei encarcerado em “O Homem da Máscara de Ferro” (1977), lançados originalmente como telefilmes, além do mosqueteiro Aramis na trilogia cinematográfica “Os Três Mosqueteiros” (1973), “A Vingança de Milady” (1974) e “A Volta dos Mosqueteiros” (1989). E ainda foi o Príncipe Encantado no musical “O Sapatinho e a Rosa: A História de Cinderela” (1976), em uma releitura visualmente deslumbrante da fábula.
O Rei das minisséries
Nos anos 1980, Richard Chamberlain se consagrou como o grande nome das minisséries televisivas nos Estados Unidos, recebendo o apelido de “Rei das Minisséries”. O marco inicial dessa fase foi sua performance como o navegador inglês John Blackthorne em “Shogun” (1980), adaptação do romance de James Clavell produzida pela NBC. Originalmente planejado como um longa-metragem estrelado por Robert Redford, o projeto se transformou em uma minissérie de 12 horas exibida em cinco noites consecutivas.
A produção, que também incluía o icônico ator japonês Toshirô Mifune (“Os Sete Samurais”) como o Xógum, foi gravada inteiramente no Japão e impressionou pela ambientação realista. Sua exibição foi um fenômeno de audiência e crítica, que marcou a era das minisséries televisivas por mostrar um padrão de qualidade até então visto apenas em filmes de cinema. A atuação de Chamberlain lhe rendeu o Globo de Ouro de Melhor Ator em Minissérie ou Filme para TV e uma indicação ao Emmy.
Três anos depois, Chamberlain voltou a fazer história com “Pássaros Feridos” (The Thorn Birds, 1983), minissérie baseada no best-seller de Colleen McCullough. Ele interpretou o padre Ralph de Bricassart, um sacerdote dividido entre a vocação religiosa e seu amor proibido por Meggie Cleary, interpretada por Rachel Ward. A produção, exibida em quatro noites pela ABC, tornou-se a segunda minissérie mais assistida da história da TV americana, atrás apenas de “Raízes” (Roots), de 1977.
Além de solidificar seu prestígio como ator dramático, “Pássaros Feridos” lhe valeu outro Globo de Ouro e consolidou as minisséries como um dos principais formatos da chamada “era de ouro” da televisão americana dos anos 1980.
Chamberlain ainda protagonizou outros títulos importantes do formato, como “Missão Matar” (1988), minissérie baseada em “A Identidade Bourne”, em que interpretou pela primeira vez nas telas o agente criado por Robert Ludlum — anos antes de Matt Damon assumir o papel.
O último grande herói
Na segunda metade dos anos 1980, Chamberlain assumiu o papel do aventureiro Allan Quatermain em duas produções que tentaram capturar o espírito dos clássicos de ação e aventura em moldes semelhantes aos de “Indiana Jones”. O personagem, criado pelo escritor britânico H. Rider Haggard no século 19, já havia sido adaptado anteriormente, mas ganhou nova vida nos filmes “As Minas do Rei Salomão” (1985) e “Allan Quatermain e a Cidade do Ouro Perdido” (1986).
Ambos os filmes foram produzidos pela Cannon Films com estética pulp e tom exageradamente escapista, apostando em tramas repletas de armadilhas, civilizações perdidas e sequências de ação em ritmo acelerado. Chamberlain contracenou com Sharon Stone nos dois longas, em papéis que reforçavam sua imagem de herói romântico, mas agora em um contexto de aventura caricatural e com certo viés paródico.
Anos de repressão e libertação
Embora tivesse se consagrado como símbolo do galã romântico, Chamberlain viveu sob constante repressão por ser gay numa era em que isso era visto como inaceitável. “Havia um medo terrível de ser descoberto. Minha carreira dependia de parecer um herói romântico”, disse, em entrevista de 2010. Em sua autobiografia “Shattered Love”, lançada em 2003, ele falou abertamente sobre sua sexualidade.
“Crescer nos anos 1930, 40 e 50 sendo gay era impossível. Achei que havia algo errado comigo. Mesmo famoso, esse sentimento ainda estava ali”, declarou ao New York Times em 2014. Ao publicar seu livro, disse que sentiu como se um anjo o tivesse libertado. “Ser gay é uma das coisas menos interessantes que alguém pode saber sobre uma pessoa.”
Trabalhos finais
Após se assumir gay, Chamberlain passou a aparecer em papéis correspondentes na TV e no cinema. A partir dos anos 2000, participou em “Nip/Tuck” como um milionário gay, em “Brothers & Sisters” como antigo interesse romântico do personagem de Ron Rifkin, foi o ex-marido gay de Lynette Scavo (Felicity Huffman) em “Desperate Housewives” e divertiu o público como a mãe de Craig Ferguson em “The Drew Carey Show”. Por fim, na comédia de Adam Sandler “Eu os Declaro Marido… e Larry”, apareceu como um oficial da igreja que celebra cerimônias de casamento entre casais do mesmo sexo, demonstrando empatia e dignidade com relação à causa LGBTQIA+.
Sua última aparição televisiva foi numa pequena aparição na nova versão de “Twin Peaks” em 2017.
Em nota, seu ex-companheiro Martin Rabbett afirmou: “Nosso amado Richard agora está com os anjos. Ele está livre e voando em direção aos que nos precederam. Como fomos abençoados por conhecer uma alma tão incrível e amorosa.”